Aprovado pelo Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) este mês, o programa Combustível do Futuro traz uma sinalização ao mercado sobre o planejamento energético do governo federal para a descarbonização do setor de transportes. É também uma resposta à tendência mundial de eletrificação da frota.
“Nós não podemos ser arrastados por uma tendência global e não aproveitar aquilo que o Brasil tem de grande expertise e grande tecnologia, que são os biocombustíveis e biotecnologia”, disse o secretário de petróleo, gás natural e biocombustíveis do Ministério de Minas e Energia (MME), José Mauro Coelho.
Coelho participou do programa EPBR Entrevista na quinta, 29, ao lado do diretor de biocombustíveis do MME, Pietro Mendes, para detalhar o novo programa do governo, que será dividido em eixos temáticos e buscará integração de políticas já estabelecidas para o setor, como RenovaBio e Rota 2030.
Uma das apostas é ampliar a análise do ciclo de vida dos combustíveis, que já ocorre no RenovaBio, para considerar a pegada de carbono desde a produção até o consumo final, em uma avaliação “do poço à roda”.
“Se você considerar a fonte da energia, você tem emissões sim. Se você não dá a correta indicação para indústria automotiva, parece que a única solução para veículos leves é a eletrificação. É uma sinalização aos investidores”, explicou Pietro Mendes.
“É um programa bastante abrangente. Um eixo só sobre o ciclo Otto, um eixo de diesel, outro é captura e armazenagem de carbono de biocombustível e hidrogênio, outro só sobre bioQAV, combustíveis marítimos de baixa emissão e incentivar que operadores de petróleo usem parte do P&D para objetivos do Combustível do Futuro”, completou José Mauro.
Segundo o secretário, o grupo de trabalho do programa tem 180 dias para entregar os resultados de uma série de estudos com os diferentes eixos temáticos. “O que vai sair daí vamos encaminhar para o CNPE propostas de política pública”, disse.
A seguir, conheça alguns eixos temáticos e o que está em jogo em cada um deles.
Ciclo Otto (motores a gasolina e etanol)
Segundo o MME, estudos indicam que a gasolina do futuro tem que ter octanagem de 102. Um dos objetivos será verificar junto à refinaria o que precisa ser feito para isso. Hoje, a octanagem no Brasil é 92.
Outro ponto é a bioeletrificação. “A eletrificação da mobilidade é irreversível, mas que tipo de eletrificação nós estamos falando? No caso do Brasil, precisamos ter uma bioeletrificação, eletrificação com biocombustíveis”, indica Coelho.
Para o secretário, a bioeletrificação, junto com os veículos híbridos, pode alavancar também a tecnologia de veículos movidos a hidrogênio a partir de célula combustível de etanol.
“Quando a gente olha custo de veículo e vê os programas de eletrificação, eles estão baseados fortemente em subsídios estatais. Tem estudos que apontam a redução do custo de bateria, mas é fato que hoje o Brasil fazer uma opção para uma eletrificação puramente elétrico seria extremamente custoso”, comenta Pietro Mendes.
Para Mendes, é preciso avaliar a eficiência antes de pensar um subsídio.
Uma das propostas é que o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) fique com a coordenação de pesquisa e desenvolvimento e que sejam criados incentivos para que operadoras de óleo e gás invistam em estudos de célula de combustível a etanol como uma fonte de hidrogênio onboard.
Por sua vez, o etanol líquido lignocelulósico, ou etanol de segunda geração, é visto como estratégico para tornar o biocombustível uma commodity. “Muitos países não produzem etanol porque não tem áreas agricultáveis em tamanho suficiente para produzir cana ou outra cultura. Mas se eu tenho tecnologia para produzir o etanol através de material celulósico isso muda completamente”, explica Coelho.
Ele acredita que a ampliação do mercado pode dar sustentabilidade a outros combustíveis renováveis, que ainda não alcançaram competitividade em relação aos fósseis.
Ciclo diesel (veículos pesados)
O futuro do biodiesel e a inserção do diesel verde na matriz de combustíveis são temas que já vêm sendo discutidos dentro do MME. Mas o gás natural também está na mira do governo como uma tendência para os veículos pesados – ônibus e caminhões.
“Agora com a sanção da nova Lei do Gás, a gente vai ter um avanço no mercado de gás natural do Brasil. Estamos trabalhando no decreto regulamentador da lei do gás, esperamos ter esse decreto publicado até início de maio”, disse Coelho.
De acordo com o secretário, isso vai dar mais clareza e alavancar investimentos. “É claro que vai continuar tendo diesel, não tenha dúvida disso, mas eu acho que grande parte pode ser ocupada pelo gás natural, afirmou.
Coelho também lembrou a dependência externa de diesel de petróleo em um patamar “importamos”, representando cerca de 23% do consumo.
Além disso, o MME também vê um grande potencial no uso de biogás e biometano e formação de corredores verdes de abastecimento, que incentivariam também a expansão da infraestrutura de gasodutos.
“A gente quer identificar medidas e políticas públicas para que a gente possa, no médio prazo ter corredores verdes, com veículos transitando a gás natural e postos de abastecimento”, explicou Coelho.
De acordo com Pietro Mendes, o Ministério da Economia tem feito reuniões para verificar quais são as condições para que esses corredores existam. “O biometano tem um papel fundamental na interiorização das rotas onde os gasodutos ainda não chegam e podem até servir como um estímulo para construção de gasodutos no futuro”, completou o diretor.
Combustível Sustentável de Aviação (SAF)
A aviação civil internacional tem um acordo equivalente ao Acordo do Clima de Paris – o Corsia (Carbon Offsetting and Reduction Scheme for International Aviation). Nele, mais de 70 países, representando cerca de 85% da atividade de aviação internacional, se onde se comprometeram a reduzir suas emissões, com metas obrigatórias a partir de 2027.
Dentre as soluções para a descarbonização desse setor, os biocombustíveis de aviação são apontados como a solução mais eficiente. “Temos que ter uma solução ‘drop in’ para esse caso. Não tem como ter solução de motor elétrico, tem que ser ou um biocombustível ou um combustível sintético. Se o governo não der vetores nesse momento para que essa indústria comece a crescer no Brasil vamos chegar em 2027 sem nada”, destacou Coelho.
Um dos principais entraves para o uso em larga escala do bioquerosene é o preço, já que o combustível de aviação representa em média, 24% do custo de operação das companhias aéreas globalmente. No Brasil, chega a 36%.
Neste cenário, o MME vê na produção de SAF uma oportunidade para o Brasil. Tanto em termos de reduzir custos para as companhias que atuam no país, quanto para ser um exportador global.
“Dada as condições que temos hoje, acho que faz todo sentido que o Brasil se torne um dos maiores produtores de SAF no mundo. Agora a gente tem que aprofundar os estudos com relação a quanto vai ser esse preço em 2027, para que a gente consiga ter um debate tanto com os agentes, mas também com o Ministério da Infraestrutura e Economia e fazer um estudo comparativo com o preço do crédito de carbono”, sinalizou Pietro Mendes.
“[Um hub de produção aqui] pode atrair abastecimento de aeronaves de outros países para cumprir as metas, melhorar a questão de rotas, são muitas vantagens que vislumbramos, mas é um aprofundamento que vamos fazer no âmbito do grupo”, completou.
Hidrogênio e Probioccs
Um dos subprogramas do Combustível do Futuro, o probioccs vai estudar captura e estocagem de CO2 na produção de biocombustíveis (BioCCS).
“Se a gente consegue fazer essa captura, o produtor de biocombustível pode até aumentar em 20% a sua nota de eficiência energética ambiental e ela entra no cálculo para emitir CBios”, estima Coelho.
A proposta é criar um arcabouço legal e regulatório para o BioCCS. A demanda veio de produtores de etanol de milho do Centro-Oeste que querem fazer injeção de CO2, mas não encontram amparo na regulação.
A regulamentação também deve se estender a outras formas de captura e armazenamento de carbono, para viabilizar o hidrogênio azul – quando a fonte é fóssil, mas o carbono emitido é capturado para neutralizar as emissões.
O CNPE aprovou na semana passada a elaboração de um programa nacional para o hidrogênio.
Na avaliação de Pietro Mendes, pode-se esperar um ‘hidrogênio arco-íris’. “O Brasil não tem por que escolher uma determinada rota. Com o aumento da produção de gás natural faz todo sentido ter hidrogênio azul. Como a gente tem energia eólica e solar, ter o hidrogênio verde”, explica.
Combustível marítimo
A Organização Marítima Internacional (IMO, em inglês) tem meta de reduzir em até 70% as emissões do setor marítimo até 2050.
De acordo com Pietro Mendes, o Brasil ainda não tem uma estratégia de descarbonização no transporte marítimo e o Combustível do Futuro pretende preencher também esta lacuna.
“Qual é a estratégia brasileira com a IMO? Vamos ser simplesmente atraídos pelo que a União Europeia e os EUA estão colocando? Que tipo de combustível para transporte marítimo o Brasil vai defender? Hoje a gente não tem essa resposta, então a ideia é trabalhar em conjunto com a autoridade marítima brasileira e com atores que estão representando Brasil na IMO para ter uma estratégia de descarbonização”, destacou.
Nayara Machado e Larissa Fafá
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